sábado, 14 de abril de 2012

Monk & Mulligan, de Carlos Felipe Moisés, em Noite nula

Toda lição é de casa. Uma ensina a aprender
outra aprende a ensinar. Não sei para quando
será a viagem. Não sei se parti, se já estou
de regresso nem se a lição é de fato minha,
dos pombos que giram no telhado ou do silêncio
entre o sussurro de Monk & o sopro de Mulligan
no meio da sala: ‘Round midnight.
Lá fora(
sol alto) lição interrompida. O sal da lição?
Não saber. Sabida, lição já não é.

Naquele
tempo eu viajava para longe, toda semana.
Um dia estranharam minha alegria ao partir.
“É tão bom assim?” “Não, é que aprendi
a antegozar o prazer da volta.” Nada se iguala
ao alívio antecipado do dever cumprido. A casa
acumula todas as lições: ontem, hoje – o mesmo
tempo a escoar entre o já-não-mais e o ainda-
não – centro de tudo o que sou ou tenho. Mas não
tenho: a casa o contém. E não há lição que o
detenha.

O que tenho é um retrato na parede
: um menino me fita apaziguado, seu olhar
se dissolve na brisa. Escancaro as janelas
e o calor da tarde me lembra: outono se foi,
inverno se foi, primavera aí vem ( o rendilhado
de Monk prossegue & o sopro agudo de Mulligan).
Outra primavera: midday midnight. O menino
salta do retrato, se aninha no sofá e me lembra
a sorrir: é hora de voltar a lição interrompida.
Sorrio que sim, à sombra do jasmineiro
em flor.

É tarde. Não sei a lição (há pouco
estava no jardim). Como enfrentar classe
tão avançada? A sombra se adensa, é noitinha.
O olhar do menino me fita, não sei se do retrato
ou do canto do sofá onde se aninha,
não sei
se do olho iluminado da noite, e sorri. Sorrio
que sim. É a hora. (Monk &Mulligan insistem
agora sim: ‘Round midnight. Lição de casa.) (MOISÉS, 2008, pp. 44-45)

segunda-feira, 2 de abril de 2012

_________

sou um árcade sofista
quem diz ser um árcade
sofista? _____ ser um ar
potência, comunidade
_______________ de a
feto, o texto de um ar

quinta-feira, 29 de março de 2012

Ficção de origem, de Marcos Siscar, em O roubo do silêncio(2006)

1.
Naquele dia, a água perdeu o fundo e a margem se
afastou.Da vertigem, restaram-lhe apenas os cabelos
grossos, o inequívoco futuro anterior do que terá se
tornado vida; da queda, a miragem, um espectro en-
tre folhas de mangueira; do cadáver, a ausência pre-
sente, a catacrese do impensável; do vôo, a levitação,
o movimento simulando o desejo; da velocidade, ape-
nas a flor sem geometria.Mas veja. A morte pentean-
do seus longos cabelos castanhos, de uma beleza de
encostar a cabeça no seu colo, senta-se junto da mesa e
conta histórias antigas, imemoriais. Silêncio, é preci-
so ouvi-la, a ela apenas a palavra morde, a ela apenas o
destino aprecia. Não basta vida. Começa no fim a
origem da arte a que chamarei vitalidade.
SISCAR, Marcos. O roubo do silêncio. Rio de Janeiro: 7 letras, 2006, p.31.

segunda-feira, 12 de março de 2012

fragmentos de Visão 1961, de Roberto Piva, em Paranóia

[...]

minhas [...]

na solidão[...]

noite profunda[...]

já é quinta-feira]...]

os banqueiros[...]

[...]

segunda-feira, 5 de março de 2012

Cinderela, de Fabio Weintraub, em Novo Endereço

mesma esquina:
a velha enrola bobes
na imunda peruca

o batom transborda a boca
onde a prótese emprestada
oscila

garis caçoam

descalça e crédula
órfã de fadas
sorri-me a velha

há bailes além do borralho

(WEINTRAUB,2002, p.34)

Celebridade, de José Paulo Paes, em Socráticas

para Raduan Nassar

Eu sou o poeta mais importante
da minha rua.

(Mesmo porque a minha rua
é curta.)

(PAES,2001, p.37)

quinta-feira, 1 de março de 2012

sobre o nada, proteu

para falar a verdade o único poeta árcade que conheço
ouvi falar é verdade é um tal de sei lá um poeta heterônimo
de um tal de fernando caeiro parece que reis num sei talvez
dia de rei num cemiteriozinho sem transcendia à espera
de alguém que o estude leia-o pelo menos para que assim
presentifique-se ou coisa parecida alguma coisa com a verdade
dessa expressão verdade árcade poeta mentira amor enume´-
ração pastor ficção barroco( às margens de um rio) e o cansaço
de terminar esta conversa
que surgiu de um pombo querendo a pomba e a pomba não quis o
pombo que na cópula tombou voou outro pombo querendo –a
pousou não tombou e que não surja ninguém metido à besta
falando em orfeu roufenho

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Proteu, de Antonio Cicero, em A cidade e os livros

Helena jamais regressará.
Ao meio-dia não sairá
ela mas Proteu do mar bravio.
Quem lá estará à espreita escondido?
Tu. Não mais aguardarás Helena.
Guarda o nome, quando muito: Helena,
mas abre os braços e enlaça o Velho
que sai da espuma: abraça o leão
que ele será, segura a serpente,
cinge o bólide e a água corrente,
engole a televisão e a mata,
sê por um bom tempo o que tente
e para sempre nada: não pregues
coisa alguma no lugar do nada. (CICERO, 2002, p. 23)

domingo, 26 de fevereiro de 2012

não fazendo nada

soube de uma certa poesia árcade,mineira
sobretudo tudo mesmo pedra barroca de um
aleijado pedra dura bate bate que fura
num anacrônico pastor, conversinha fiada
de um outro pastor,muito liberal
mas bem menos que aquele sujeitinho
também versado em pedras, mas não árcade
talvez um exemplo da ficção poesia
plasticidade sob a mediocridade
de um nome de um pastor: inominável

meditação, de Rubens Rodrigues Torres Filho, em Novolume

Se minha cabeça toma jeito,
não fica do mesmo jeito. Do mundo mesmo,
quero pouca coisa.Hoje, penso,
quase nada.
É um virar e desvirar de coisas internas.
Quase uma santidade, se for.
Do que passou, do que foi,
das coisas que aconteceram comigo,
parece que está tudo resolvido,
concluído, terminado,
perdoado. Problema, mesmo,
acho que não resta nenhum. Só carinho.
(TORRES FILHO, 1997, p.60)

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Rascunho para um retrato de criança, de Marcos Siscar, em Interior via satélite

era um vento soprando (poeira na rua)
cavalos cansados cachorros baldios
a criança na cama de olhos abertos (a vida era um)
cheiro de fumaça no rebojo da manhã
irmãos bulindo mães lavando
paredes caiadas os dias muito longos (privação
de corte) um olhar (ao lado esquerdo da imagem)
vigiando a poeira em suspensão
o poema ainda não estava ali (ou melhor) faltava-lhe a cesura
a repetição esfregando a face áspera
a telescopia de um rosto encardido
o enjambement inserindo o silêncio e (depois
de perdido para sempre o mot juste) o dês
ajuste (quem sabe)
(SISCAR, 2010, p.71)

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

livro O dragoeiro, de Cristiane Rodrigues de Souza, p.63

a menina trança danças entre pedriscos de cores de
cantos tardes (quase) de pássaros vidrilhos estrelas
estradas vênus sem camisa mundos vidrados de prismas
envidraçados por música de palavras

filho filha

se existisse estaria na idade de beber
com o mirisola, ler o marcos siscar
talvez quisesse um béq, eu daria
se existisse estaria ouvindo
o que quisesse, bebendo, lendo
fumando com quem e o que desejasse
estaria plantando uma flor destruindo
mata ciliar para implantar o acaso
se existisse me daria uma senda, sentido
de uma imaginária existência biológica
comeria e sentiria o afeto feminino
sentiria a fragilidade dos homens
talvez tivesse aula com o scheel
poderia até mudar o nome:
rainer maria rilke
carolina, joana d´arc, beatris
estaria morando no japão, na índia
em itápolis, conheceria o lilo
o chiquinho, seria discreto(a)?
mataria alguém? saberia agir
com compaixão, 7 x 7 saberia?
eu protegeria tal ser da solidão,
da existência, do amor e da verdade

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

diário de campo (s/d) (11 a 14)

11
aliança duradoura de im-
possibilidades métricas, rítmicas

de sentido de qualquer coisinha
entre ainda-ser e já foi agora

des-
aparecer

12
sempre sonhado uirapuru
canto inventado pelo rio

13
economia de afetos
talvez pouco jasmim, olfato

abundância de dedos
evitando segredos, enigma

cadafalso olhar, silêncio
comermo-nos: sentido

14
dístico vão
dísticos vão

diário de campo (s/d) (6 a 10)

6
chuva vem sem pedir surpresa
vê-la no olhar da moça sempre

bem vestida corpo protegido
guarda-chuva interior,

7
dísticos vão dísticos vêm
de dois em dois de dois em dois

entram e saem através dos tempos
agudeza prendê-los assim

de dois em dois de dois em dois
dísticos vieram dísticos foram

8
querubim já está na cidade
outro corguinho fudido

9
nunca fui (tão ) feliz
schiller, goethe, hörderlin

heine, benn, rilke
e outras palavras duras

que permanecem em
estado de calma, soleira

vastidão sem olho no olho
luz no meu caos, augenblick

10
crise e pétalas
nos enredados dedos

sem enigma qualquer:
uma flor, meio página

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

diário de campo (s/d) (1 a 5)

1
enterraram um rio santo ao lado do não
desejo contendas concreto lápide ignorante
de caminho leveza irregularidade só mesmo
mãos não sabiam da fúria íntima de
um rio de um santo de um tio sem afluentes

2
tercílio venha venha em sonhos discursos
de um quase tio morto vivo somente memória
em que italianinhos duelam com negrinhos
no interior de uma história do tijuco preto
vila cajado espaço extinto de um tempo no qual
tercílio veio morto

3
nunca falei em mãe porque mãe há
intemporal existência de uma prótese
para a vida

4
rio enxurrada pocinha chuva
amor pinguela asfáltica urbana vontade
de água parada administrada impermeabilidade

5
flor é linguagem de algo a vir
sem hora marcada inesperado olhar
sem vazio de ausência

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

dísticos

nasceu, pode florescer
narciso, deixou de ser

um simples –er, rima, ritmo
um quase descompromisso

em nascer florescer-se
em marias sem vergonha

em todas as cores(flor
es)sem vergonha de ser

princípio

domingo, 12 de fevereiro de 2012

amorzinho

ela ainda não compreende tanto
amor por ela assim de graça
fiz, dia desses, uma francesinha
cutículas, uma beleza de pé
uma beleza de graça pe
de novo desafio
enigma quase
tatuagem unhal

este lugar acho
às vezes, não sempre
espaço que sou
contingência
corpo em movimento
e, no prazer da dúvida
cortar

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

nua vênus água

como a vida sempre tem
se mantido alerta com
o seu próprio manter-se
sejamos, se pudermos
ser sem segredo de nós
se pudermo-nos des-
fazer em porras semen
tes de um ente entre