quinta-feira, 29 de março de 2012

Ficção de origem, de Marcos Siscar, em O roubo do silêncio(2006)

1.
Naquele dia, a água perdeu o fundo e a margem se
afastou.Da vertigem, restaram-lhe apenas os cabelos
grossos, o inequívoco futuro anterior do que terá se
tornado vida; da queda, a miragem, um espectro en-
tre folhas de mangueira; do cadáver, a ausência pre-
sente, a catacrese do impensável; do vôo, a levitação,
o movimento simulando o desejo; da velocidade, ape-
nas a flor sem geometria.Mas veja. A morte pentean-
do seus longos cabelos castanhos, de uma beleza de
encostar a cabeça no seu colo, senta-se junto da mesa e
conta histórias antigas, imemoriais. Silêncio, é preci-
so ouvi-la, a ela apenas a palavra morde, a ela apenas o
destino aprecia. Não basta vida. Começa no fim a
origem da arte a que chamarei vitalidade.
SISCAR, Marcos. O roubo do silêncio. Rio de Janeiro: 7 letras, 2006, p.31.

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